Conversamos com Mario Biagini, o diretor associado Open Program/Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, sobre o “Sedentos”, espetáculo que foi apresentado nos dias 09 e 11 de dezembro, na UniCesumar, em Londrina. A montagem, foi resultado do Workshop Criativo coordenado pelo Open Program com participantes da Cidade e convidados e concluiu a visita tão esperada de Mario Biagini, acompanhado de Felicita Marcelli (Itália), Jorge Romero (Colômbia), Asli Turan (Turquia); em colaboração com Vicente Cabrera (Chile), Lucas Gonçalves (Brasil), Luciano Mendes de Jesus (Brasil), Sharon Pacheco (Colômbia) e mais as coreanas Hayeon Cho, Sunhwa Jee, Hong Yoonkyung , integrantes do grupo “Play Zero”, selecionado pelo Korean Arts Council – ARKO para uma residência artística com o Open Program. A vinda do grupo internacional para Londrina também marca também o encerramento da primeira fase do Cartão de Visitas e direciona para a evolução do conceito da ação em 2022.
A dramaturgia de “Sedentos” foi inspirada em trechos da obra A Grande Bebedeira, do escritor surrealista francês René Daumal com vários elementos cênicos e muita música, todas composições originais e executadas ao vivo pelo elenco. O CICLO é um projeto aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura, com patrocínio da UniCesumar e Copel; realização da Palipalan Arte e Cultura, Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal. Apoio da Superintendência Estadual de Cultura, Secretaria Municipal de Cultura de Londrina, Visualitá Gestão em Design Estratégico, Teatro Della Toscana, Great Globe Foundation e Restaurante Caco Self Service e Oskman Advocacia. Parceira Institucional: Festival Internacional de Música de Londrina, Folha de Londrina e Espaço Vila Rica. Apoio cultural da Rádio Universidade FM.
Confira trechos da entrevista concedida à jornalista Janaína Ávila. As fotos são de Valéria Felix, durante a Conferência com Mario Biagini, dentro da programação do CICLO 2021, em dezembro.
Como nasceu a ideia de “Sedentos”?
MARIO BIAGINI: Nasceu gradualmente. Fomos convidados para um seminário em Paris, com a duração de duas semanas junto com a ARTA (Association de Recherche des Traditions de l’Acteur) e o Théâtre de la Ville, e já existia a vontade de mudar o modo em que trabalhávamos com as pessoas, deixando de propor cenas individuais de maneira pedagógica. Conversando com uma colega do Open Program, lembrei de um romance que li ainda adolescente e que me entusiasmo muito, “La Grande Beuverie” (A Grande Bebedeira), de René Daumal e assim foi. Durante o período de lockdown, começamos a ler várias obras de Daumal e partimos justamente de “La Grande Beauverie para criar um material para o Seminário na França. Trabalho remoto, todos em casa, mas conseguimos encontrar vários modos de prosseguir. Depois, com o relaxamento das normas restritivas que passaram a permitir as viagens, fomos para Paris em julho e alí trabalhamos com um grupo de quinze pessoas, entre atores e músicos a partir de todo o material elaborado durante o lockdown, na Itália. Em dez dias, criamos o espetáculo “Les Assoiffés” (Os Sedentos) que foi apresentado ao ar livre, em segurança e de acordo com as normas sanitárias, no Espace Cardin do Théâtre de la Ville e correu tudo bem. Tenho a sensação que as palavras de Daumal – que foram escritas no período entre as duas guerras, em 1938 – são extremamente atuais. Daumal era um prodígio, ainda jovem e no segundo grau criou com alguns amigos um grupo para explorar coisas do tipo: o que é a percepção? Como funciona a consciência? O que seria a poesia e será que ela poderia ser um meio para acessar uma realidade mais verdadeira daquela que vivemos? Esse mesmo grupo criou uma revista literária, chamada Le grand jeu, em Paris que circulou com três números. O grupo acabou por se dissolver, mas Daumal continuou a sua trajetória de uma maneira que, até hoje para mim, mesmo eu não sendo mais um jovem, é sempre exemplar. Quando leio as suas palavras encontro um sentido, encontro uma exigência sua de ser honesto e sincero. É muito realista e também demonstra muita compaixão pela vida dos seres humanos.
Como foi a estreia em Paris e quais as expectativas para Londrina?
MARIO BIAGINI: Foi um sucesso essa primeira experiência sobre Daumal, com pessoas de fora do nosso grupo. Tanto para os participantes quanto para quem assistiu. Uma coisa que gostei muito foi que trabalhamos de uma maneira muito descontraída, com composições musicais originais, todas compostas por nós. Isso nos deu a sensação que ao invés de criar um espetáculo com o nosso grupo baseado sobre a obra de Daumal, podemos criar uma coisa mais interessante, um tipo de “canovaccio”, uma estrutura aberta de textos, músicas e ações que podemos levar para vários lugares e, a partir das pessoas que participam e da localidade onde nos encontramos, a criação de um espetáculo, a cada vez diferente. Para Londrina, a expectativa era alta e se confirmou. Faz tempo que estamos trabalhando juntos, remotamente, com encontros só pela internet. Através do CICLO, tivemos a oportunidade e sorte de encontrar tantas pessoas, artistas, grupos e comunidade. Com Sedentos é a ocasião de finalmente fazer alguma coisa com essas pessoas que, até hoje, só tínhamos encontramos virtualmente. Chamamos também outras pessoas, de diversas partes do mundo, a colaborarem conosco. Pessoas que estão próximas ao Open Program, que acompanham o nosso trabalho. Um trabalho participativo, que queremos deixar disponível e acessível a todos.
É possível definir o espetáculo? É um coro? Teatro? Um musical?
MARIO BIAGINI: Serão os espectadores a dizer isso. Acredito que no Brasil, as pessoas sabem muito que bem que existem ocasiões de encontro e que quando se encontram, fazem coisas fora do seu cotidiano. Podem dançar juntos, cantar, conversar e quando isso acontece, é o quê? Um ritual? Uma festa? O teatro, na sua forma mais antiga, compreendia muitas dessas coisas, todas juntas: o coro, o diálogo, a dança, o canto. Bata pensar na tragédia grega e a tantos outros fenômenos artísticos ao redor do mundo. Um musical talvez seja o formato mais interessante hoje porque, provavelmente, é uma das formas modernas teatrais que mais se aproxima ao teatro antigo. No palco, cada artista deve ser capaz de dançar, cantar, atuar assim como é na tragédia grega e assim como ela era, é uma forma de arte popular, ou seja, para todos. Embora com ingressos caros demais, na minha opinião. Nunca tinha estado em Londrina, só com o coração e com pensamento. Ao longo desses quase dois anos, trabalhando com o CICLO, pensei muito nesse lugar.
Na sua opinião, do que temos sede?
MARIO BIAGINI: Se eu soubesse, talvez não me sentiria mais sedento. Vivemos todos em tempos estranhos, de certa forma obscuros e certamente, em alguns lugares do mundo a situação é ainda pior. Tem uma situação global e planetária de tanto estresse, angústia pelo futuro e não só por conta da crise sanitária provocada pela Covid-19, mas também por tantos outros problemas. Talvez, o ser humano sinta sempre sede até nos períodos menos difíceis e duros. Pode ser que tudo o que fazemos, todos os dias, seja um modo de matar essa sede, mesmo que essa satisfação dure só alguns segundos. Eu acredito que muitos de nós, nesse momento, sentimos o desejo de nos reencontrarmos para fazer algo juntos, que nos dê a sensação de que futuro pode ser melhor. Fazer em conjunto para poder imaginarmos um futuro melhor. Eu tenho sede de poder imaginar coisas que não conheço e de poder ser útil a alguém, mesmo que seja de uma maneira muito simples. Penso que a sede, que cada um sente individualmente nesses tempos que parecem desérticos é, na verdade, uma sede que só podemos enfrentar todos juntos.
Como a pandemia influenciou o seu trabalho? Já é possível entrever um futuro?
MARIO BIAGINI: A pandemia influenciou todos os habitantes do mundo, criando altos níveis de estresse e incerteza. O futuro é previsivelmente imprevisível. Entrevejo um futuro com a necessidade radical de fazer transformações drásticas no modo como estamos juntos no mundo, como nos relacionamos entre nós, com o ambiente e dentro de nós mesmos. Sinto que são tempos de divisões, agressões, de polarizações. Todos esses movimentos de conflito tem uma grande força, como se houvesse um grande impulso nessa direção e tudo que vai no sentido oposto, é mais delicado, frágil. Espero que uma direção mais gentil, que fala menos alto, que não grita, possa influenciar esse futuro que ainda não consigo vislumbrar.
Como foi a experiência com o Cartão de Visitas e a construção dessas novas relações?
MARIO BIAGINI: Praticamente passamos a pandemia juntos, cada um numa parte do mundo, através das telas do Zoom, de mensagens no Whatsapp. E mesmo quando não estávamos em contato dessa forma, sei que pensávamos uns nos outros e talvez isso seja a coisa principal. Aquilo que fazíamos aqui na Itália, era trabalhar pensando em quem estava em Londrina e sei que foi assim também para o CICLO que trabalhava pensando a nós. E pensando no CICLO, no esforço, nas dificuldades, nos sucessos, nas belezas que foram criadas com tantas limitações, em tudo que conseguiram realizar, nos problemas que encontraram, na superação, a mim só dava muita força. Porque sei que existem pessoas que estão lutando para um presente e um futuro diferente. O CICLO é uma belíssima experiência que sempre nos deixa com gosto de quero mais. Por isso continuamos todos juntos. A construção dessa relação é até difícil de contar porque passa pela história de indivíduos, de grupos, de comunidades, de vários momentos.